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Mensagens

A mostrar mensagens de novembro, 2009

requiem

-Consegue lembrar-se de pormenores? - Pormenores? - Sim, descreva-me a cena antes e depois do “acidente”. - Doutor, sei que estávamos no carro, parados na Praça, a falar normalmente… depois comecei a sentir uma forte pressão na cabeça, um zumbido forte nos ouvidos, a seguir a explosão… - Estávamos? Explosão? -Sim, a pessoa morta ao meu lado, tudo a andar à roda… -Morta? -Sim, a Praça em chamas, eu sem sentir nada, a bater a porta do carro, de volta a casa. Sem acudir a minha companheira, ali mesmo, fulminada ao meu lado. E tudo a desmoronar-se em redor e eu a passar por toda aquela catástrofe, coração de pedra, alheio à desgraça… - Senhor Fernando, pare por agora, se faz favor. - Repare, nada do que me conta faz grande sentido. Caso não saiba, apareceu-nos aqui à porta do hospital como outro qualquer paciente, queixava-se de uma forte enxaqueca, pedia só que lhe receitassem algo para suportar as dores, nada mais. O curioso foi começar por trocar a sua identidade, os s

da mentira

Ausentei-me há muito. Não sinto falta da Ribeira das Naus, tão pouco dos sons do Tejo. Hoje as gaivotas recordam-me dias de tempestade. Estou em terra firme, a brisa marítima, minha confidente passou a miragem. Escrevo-te como se vivesse no exílio: mas não, parti por vontade própria. As cores aqui são outras, as pessoas falam mais alto, projectam a voz desgarrada a curta distância. Habituei-me depressa ao ritmo desta cidade. A torrente de cheiros novos, alguns nauseabundos, contaminam-me todo o tempo. Quase sou um deles. Ainda visto os trapos velhos para te recordar, deliro nos gestos de ontem para adiar a personalidade do hoje. Enfraqueço minuto a minuto, o sangue preguiça dentro de mim, assombra-me o infortúnio. Ouço os teus soluços, longe muito longe, sumidos. Dobram-se-me os joelhos, vergo-me perante o Poder divino, no quente da pedra escura, como se Tu te transformasses num caminho além do que é visível, para este ainda teu comum mortal.

bichano

O meu gato segue à risca as minhas instruções e logo de manhã, depois de eu sair de casa levanta a mesa do pequeno-almoço e aspira o chão da sala; ao almoço envio-lhe um sms com a lista de produtos para trazer do supermercado, ele solicito, cumpre à risca cada um dos items e traz põe sempre no cestinho de compras produtos que tenham por garantia a indicação de “melhor escolha”, difundida mensalmente pela revista da defesa do consumidor; pela tarde, recebo eu uma mensagem, com a pergunta: “e para a merenda, o que vai ser?”; ao chegar a casa degusto um magnífico pão com fiambre e um leite morno, com chocolate, de fazer inveja à leitaria UCAL; ao cair da tarde, enquanto leio o jornal e as crónicas do António Lobo Antunes refastelado no sofá, o meu gato sai de casa a caminho do jardim-escola para apanhar os meus filhos menores; já de noite, faço eu o trabalho de casa: cozinho, lavo a louça, adormeço a criançada e ponho a máquina da roupa a lavar. Enquanto tudo isto dura, o gato estende

Salmo

E do estúdio vi o mundo. Foi-me possível aferir o jorrar do sangue nas veias da cidade. Marcha matutina de todos quantos se afundavam num momento de intenso labor; regresso descontraído à casa que se abre. Tudo registei. A natureza reassume o controlo absoluto, desfere no Homem golpes misericordiosos de requintada malvadez. Abominável realidade de tom carmim, fétida e putrefacta. Seres pequenos e rastejantes, agora desprovidos de poder. Murcha o trevo da sorte, caem Deuses das paredes forradas a talha dourada. Não há nada nem ninguém que Lhes valha. Eu, pintor e carrasco, supremo criador do Universo, me confesso.

da alma

Ia jurar que nos últimos dias o meu coração deixou de bater. Bato no peito e não obtenho resposta. Um músculo forte e pára assim de um momento para o outro? Sou jovem, tenho uma vida pela frente. É certo que não sou casado, nem tenho filhos, mas que raio, quero continuar a andar por aí! (Alguém me ouve?) Se tivesse descontente já teria posto um balázio na cabeça ou uma corda ao pescoço. Mas não o fiz. À Horas a fio nisto. Sem resposta. Já quase não ouço. Nem risadas, nem conversas parvas à minha volta. E o barulho dos carros… onde se meteram todos? (Brincar, tudo bem, mas assim não vale. É estúpido) A luz?, simplesmente não vejo. Maldita sina a minha. Se me cansar de vez disto, como é que encontro a saída, conseguem-me explicar? Bem, sempre vos digo, deitarem-me sobre uma manta acolchoada áspera, por debaixo de uma tábua rasa é de muito mau gosto! (Por amor de deus)