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Domingo

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dos trapos

Que desconforto! A dor de cabeça miudinha, deu lugar à estranheza e ao desespero. Ontem, foi domingo, certo? Hoje, segunda-feira… Muito bem, se assim é como é que explicam que aos 85 anos eu possa ter adormecido numa casa num dia e tenha acordado numa outra na manhã seguinte? Julgar-me-ia louca, não fora a dificuldade como caminho, mesmo num chão bem posto e macio como o do meu quarto, sala, cozinha e casa-de-banho. As obras custaram-me anos de reforma. O senhor Joaquim, um homem muito honesto e trabalhador que conheço desde moço, cumpriu tudo o que lhe pedi. Em poucos meses, quase sem dar por isso, pôs-me tudo novo: trocou o papel parede por tinta rosa velho, trocou o soalho por tacos envernizados cor de pinho, os móveis, esses, continuam os mesmos, sólidos, à antiga à portuguesa. Mas, como dizia, de um dia para o outro, sinto que não estou no sítio onde pertenço, mas longe da minha casa. É tudo tão diferente, tão pouco parecido com o que é meu, que não tenho dúvidas, eu não pertenç

da via panorâmica

A nossa casa é linda. Repara como aqui apertadinhos estamos tão bem um para o outro. Aqui tudo é teu e meu; nosso, nosso, quero eu dizer! Deixa-me ver, temos o lençol, este saco-cama velho e sujo, a roupa que trazemos no corpo e pronto. De resto nada, de mais nada. Estendidos na relva, de papo para o ar, nem as paredes de uma velha casa em ruínas nos separam do trânsito e das pessoas. Por vezes, pelos menos para mim, o dia custa a passar: levantar-me todos os dias, percorrer um par de metros, parar em frente ao centro comercial e implorar pela misericórdia de quem entra e sai das lojas; cansa-me. De segunda a domingo – sempre, sempre na iminência de nem uma migalha ter para partilhar contigo – deixa-me triste, muito mesmo. Desculpa. Sabes bem que o que nos faz andar nisto é o vício, a dependência de umas gramas de pó, para mim e para ti, em comunhão. Podíamos pensar em trabalhar como todos eles. Sim, a tempo inteiro, a fazer qualquer coisa. Vejo-me até a lavar escadas, a limpar a

da frieza

“Eu não vou morrer”. A esta distância, a frase soa estranha na minha cabeça. Claro que tu irias morrer – tu, eu, qualquer pessoa que habita este mundo, mais cedo ou mais tarde morre. A tua decepção é a tragédia de qualquer ser humano ao longo de uma vida e, deixa-me que te diga, agora que me escutas de pálpebras cerradas, pôr uma corda ao pescoço não resolveu nada da existência de quem te rodeia. Senão vejamos: tu sempre foste um rufia de bairro desde miúdo, a entrar à bruta nas brincadeiras de quem não te queria por perto, a comer fora de horas, sempre a berrares com uma tia que te criou na imundice e no cheiro a podre que a tua roupa emanava. Peixe, tu cheiravas a peixe, era por isso que todos nós, ainda miúdos, te chamávamos assim. Não prestavas para nada, nem para jogar à bola, nem na cumplicidade de uma conversa inocente, nada. Depois, sabe deus como, namoraste uma rapariga que era uma amostra de gente, fraca de cabeça, viciada como tu na ignorância e no álcool e nos cigarros. C

da fuga

“Dá-te ao trabalho de ignorar a tristeza dos teus” Disse-o e saí, porta fora, sem demonstrar o mínimo gesto de arrependimento. O eco da porta ressoou pelas escadas até sorver os primeiros ruídos da rua. Depois, meio desorientado, com os ossos massacrados pela noite mal dormida, dirigi-me cambaleante para a paragem do metro, daí para a sala de espera da gare dos comboios, fixando o meu poiso ao balcão do bar da estação. Devo ter passado muitas horas em monólogo, de mim para mim, entre a voz da emoção e a voz da razão. Conclusões nenhumas, estaria ali o tempo necessário para decidir a minha vida. Minuto após minuto, o empregado do balcão investia em tentativas sucessivas para que eu consumisse qualquer coisa. “Por acaso não quer que lhe sirva uma água com gás, uma sandes para encher o estômago ou uma peça de fruta?” “Ó homem, desapareça.” Focava de novo a atenção nas mesas cada vez mais cheias de gente apressada e barulhenta e esquecia-se de mim. Não sei quantas horas ali esti

da boavista

Prometi a mim mesma não te voltar a escrever. Cansei-me de esperar por isso, de estar sentada aqui no sofá, com as mãos pousadas em cima dos joelhos, a olhar a porta na ânsia de que a campainha toque por uma ocasião. Não te vou chamar. Conseguirei conter o impulso de ir à gaveta da cómoda pegar numa folha em branco e dizer-te, vem, vem que eu cá estou. As minhas cartas fazem de uma só viagem meio Portugal só para te darem a salvação, um mimo, para que semana após semana te sintas reconfortado com uma palavra amiga, desta que te ama. Não é em vão que vivemos o que vivemos, entre abraços e beijinhos, ao princípio tímidos, depois mais longos e convictos. Tu na minha festa de debutante foste-te aproximando de mansinho ao longo da noite, primeiro, entabulando conversa com os casais de meia-idade, para depois lançares os teus olhos verde-cinza sobre as meninas. Éramos cinco ou seis, nem todas descomprometidas. Foi com certeza a tua voz colocada de locutor da rádio que me fez encarar-te co

da cabeceira

Quando parar de tremelicar talvez o possa ajudar. Sossegue, tente controlar a respiração, vá, conte 1, 2, 3, isso, devagar, vê como consegue. Calma, tente levantar-se devagar, sem movimentos bruscos; os seus músculos estão demasiado tensos, sem forçar, olhe que além da dor psicológica que o apoquenta ainda fica para aí todo torcido. Mas você está todo transpirado, homem, tem essa cama num caos, os lençóis rasgados de uma ponta a outra, os cobertores espalhados pelo chão, ó valha-me deus. Ouça, esteja à vontade. Fale do que quiser, eu estou aqui para isso mesmo. Teve algum ataque de raiva durante a noite? Não?! E pânico sentiu? Também não?! Bom, mas não descansou… Ah sim, a cabeça pôs-se a trabalhar… e? O coração bombeava o sangue à velocidade da luz (Essa nunca tinha ouvido…). Vozes, deu conta de vozes estranhas a querem conduzir os seus movimentos… Hum, e isto tudo medicado?! Os meus colegas acompanharam-no desde o início… Bem. Se eu lhe pedir para caminhar da cama até à janela,