Avançar para o conteúdo principal

do leste

Ficaste com um ares de desgraçada, nesse esgar de dor perpétua, sabias?
Esqueces-te do que disse no nosso primeiro encontro, tu és bonita, bonita a valer. Teres-me preparado esta surpresa nem parece teu. Como pudeste tu andar tão animada por estes dias. Ontem, anteontem, antes e antes de ontem, não serei exagerado se afirmasse que no último mês da nossa vida tivesse deixado de ver essa tua expressão de felicidade, a contaminar toda a gente com histórias mirabolantes, plenas de tudo de bom que trazias contigo – até eu, que recuso estados de alegria inebriantes, me sentia diferente.
Que gozo me deram aqueles passeios, da praia ao campo, sem itinerário definido. Aventura é aventura, Querido, se não gostas do imprevisto, habitua-te. E eu habituei-me. Em troca pedias-me que te falasse das serras, dos rios, do lugar, deste ou daquele escritor que por lá tinha passado. Se te fosse responder a tudo com seriedade e rigor, quase teria de transportar uma biblioteca itinerante na bagageira do carro. Enquanto não me mandavas calar, eu inventava, inventava mesmo muito, pormenores, características… tanta coisa; desde que tu te levasses pela narrativa. São inumeráveis as vezes que adormeceste colada a mim: a culpa é da tua voz suave, bem colocada, com timbre de embalar criancinhas e raparigas incautas como eu, atiravas divertida. E como aprendias depressa os disparates que te transmitia, não me lembro de uma única ocasião que ao repetirmos o passeio, não tenhas desfiado todo o meu guião de circunstância. Imitavas a cadência das palavras, carregavas no tom de voz feito homem e pronto, e prosseguias sem pausas. Estavas nas tuas sete quintas. O início como o fim pautado por uma sonora gargalhada.

É com o coração destroçado que te acuso. Porquê isto? Porquê assim sem pré-aviso? O voo janela fora que arriscaste jamais poderia contrariar a lei da gravidade. Nunca houve ninguém, em lugar nenhum, que saísse vivo desse raro impulso de libertação extrema. Foste egoísta demais.
No mínimo esperava uma longa e singular carta de amor, a servir de alerta. Nada de nada, nem mesmo o desafio: Depois vai lá ter comigo, Amor. Sem pressa!

Comentários

Mensagens populares deste blogue

divulgação: workshop dramaturgia tribal II

Dramaturgia Tribal II - Laboratório de Exploração da Imaginação Simbólica - A Metamorfose com Jorge Palinhos 22, 23, 29 e 30 MAIO 14:30-19:30 (20 horas) Galeria de Paris Rua das Galerias de Paris, 56 - Porto Preço: 75€. Amigo Terra na Boca: 67,50€ Mínimo: 8 pessoas. Máximo: 16 A metamorfose é o princípio dinâmico da criação, que rege o nascimento e a morte, a máscara e a transformação. É, por isso, o conceito-central de grande parte dos mitos e também de grande parte das histórias que conhecemos e contamos. Após a boa recepção do primeiro workshop de Dramaturgia Tribal, propõe-se agora este laboratório que, partindo da exploração das imagens, símbolos, ritos e mitos que conhecemos, permitirá aos participantes desenvolver e aprofundar histórias em torno da ideia de transformação e auto-conhecimento.Os textos resultantes deste laboratório deverão ser transformados num espectáculo a apresentar até ao final do ano. Público-alvo: Estudantes e profissionais de teatro e todos os

de pequenino

Ao contrário de outros, as minhas aulas de Educação Visual eram um pesadelo: o lápis impelia-me a encher a folha de cavalinho A4 de traços indefinidos, que só a muito custo, quiçá com a colaboração de um técnico de psicologia, se poderia aferir o significado. Na pintura não me saí melhor, a palete de cores primárias, sempre à espera do processo dinâmico de construção de ambientes mais e mais complexos, cedo se decepcionava com o Eu “artista” - angustiava-me não conseguir expressar-me na tela vazia, de encher o mundo, que para mim era só aquela sala repleta de aspirantes à arte futura. Confesso que escrever é para mim mais fácil, eu sei que as crianças começam por rabiscar no branco do papel, atabalhoadamente, sem desistir, a sua casa, a mãe, o pai, o irmão “mais” grande, o cão, o gato ou a galinha. A verdade é que desaprendi tudo isso. Logo que entrei para a escola, dediquei-me a desenhar letras como me tivessem a pedir para fazer um retrato. Ao longo dos anos, com o tique de apanh