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do feminino

Ensaiamos o grito, e esperamos. Abrimos a porta de alma vesga, adoçada pelo tempero cálido do vento instalado. Do nosso refúgio vemos o fogo que consome o mundo, casa a casa. Hesitamos expor a nossa angústia. Todos nos ignoram. Somos fugitivas, marcadas pelo tempo e pela cor da raiva alheia.
De mão em mão passamos o que recolhemos nas horas fartas da civilização. As crianças olham-nos desconfiadas. Daqui controlamos possíveis tentações que o poder instalado fez passar entre os demais. O contágio alastrou-se, imparável.
Temos consciência de que a solidariedade grupal nos há-de devolver o bem que tem faltado. Somos de outros mares, inimigas invisíveis de quem quer combater e não consegue. Soltamos amarras do porto feito partida, acenamos à vista de quem não nos quer ver regressar. A tarde viajada trará memórias desabridas, honras mal paridas, mulheres indesejadas. Somos filhas do quadro pintado, na frente de quem nos leu.

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A nossa casa é linda. Repara como aqui apertadinhos estamos tão bem um para o outro. Aqui tudo é teu e meu; nosso, nosso, quero eu dizer! Deixa-me ver, temos o lençol, este saco-cama velho e sujo, a roupa que trazemos no corpo e pronto. De resto nada, de mais nada. Estendidos na relva, de papo para o ar, nem as paredes de uma velha casa em ruínas nos separam do trânsito e das pessoas. Por vezes, pelos menos para mim, o dia custa a passar: levantar-me todos os dias, percorrer um par de metros, parar em frente ao centro comercial e implorar pela misericórdia de quem entra e sai das lojas; cansa-me. De segunda a domingo – sempre, sempre na iminência de nem uma migalha ter para partilhar contigo – deixa-me triste, muito mesmo. Desculpa. Sabes bem que o que nos faz andar nisto é o vício, a dependência de umas gramas de pó, para mim e para ti, em comunhão. Podíamos pensar em trabalhar como todos eles. Sim, a tempo inteiro, a fazer qualquer coisa. Vejo-me até a lavar escadas, a limpar a

de ontem

Fiz-me ao caminho, rumei a Norte. Para trás deixei tudo, aqueles que amava, que detestava, que me eram indiferentes. Ouvi aqui e ali que era doido. “Deixas assim o sítio que te viu nascer?”, “ Mas, e o amor? o nosso amor…”. Nada lhes respondi. Durante anos, olhei para o chão, agora feito de granito, escuro, mesmo em dias em que a luz toma conta dos dias. Sempre na sombra de outros, à espera de acordar de novo, fazer de conta que os caminhos incertos eram os mesmos de outrora, as plantas, os turistas… Com o corpo pesado, a mente turva de ideias vazia, vagueio em terra alheia. Mudar custa sempre, ainda que entre mim e o passado presente, haja somente a distância de um braço de rio.