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do antónio

Tem de reconhecer, meu velho, a sua figura cria uma certa repugnância a quem priva consigo. Parece-lhe normal que com sessenta anos se vista e comporte como uma senhora? Caramba, você ainda é casado, tem uma mulher a aquecer-lhe a cama, um filho malcriado, drogado ou pedinte, não interessa, que percorre Lisboa na pedincha de migalhas para uma dose. Bem sei que ganha para si, o suficiente para alimentar a boca da mãe, os vícios do filho, o almoço de domingo em família. Pense numa coisa, cantar à noite numa cave esconsa, repleta de homens salivantes, alheios à digna arte do playback, é tudo menos próprio para um si, homem de deus.
Soraia, Soraia, eu não posso identificá-lo dessa forma, estamos num hospital público, não num circo de aberrações. Dê-me um nome próprio, apelido. Já me dou por satisfeito, senhor… vá, vá, pare com os enjoos, não me vomite a secretária, a medicação não o impele para tamanha fantochada, esses tremeliques são um truque fácil para se alhear da consulta. É a minha bata branca que o assusta? A sério, deixe-se de coisas, o fumo do meu cigarro nem sequer está a ir na sua direcção. Nunca nenhum paciente me pediu para me abster de puxar umas quantas baforadas.
Sente-se. Conte-me, por que é que começou a comportar-se como esposa da sua esposa…. Pode alguém despertar assim tão tarde para essa estranha forma de vida? Quer dizer, trabalha anos a fio como serralheiro, um lindo dia acorda virado do avesso e pronto: transformista dos pés à cabeça, guarda-roupa próprio, lábios delineados a silicone, sem se questionar? Um trabalho decente pelo cano abaixo e vamos lá passar as noites a encarnar as Madonnas ou a Tina Turners deste mundo… Uma má disposição que começa a vir estômago acima, tolda-lhe o pensamento e olha lá que há Soraia desperta em mim?

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