Avançar para o conteúdo principal

da frieza

“Eu não vou morrer”.
A esta distância, a frase soa estranha na minha cabeça. Claro que tu irias morrer – tu, eu, qualquer pessoa que habita este mundo, mais cedo ou mais tarde morre.
A tua decepção é a tragédia de qualquer ser humano ao longo de uma vida e, deixa-me que te diga, agora que me escutas de pálpebras cerradas, pôr uma corda ao pescoço não resolveu nada da existência de quem te rodeia. Senão vejamos: tu sempre foste um rufia de bairro desde miúdo, a entrar à bruta nas brincadeiras de quem não te queria por perto, a comer fora de horas, sempre a berrares com uma tia que te criou na imundice e no cheiro a podre que a tua roupa emanava. Peixe, tu cheiravas a peixe, era por isso que todos nós, ainda miúdos, te chamávamos assim. Não prestavas para nada, nem para jogar à bola, nem na cumplicidade de uma conversa inocente, nada. Depois, sabe deus como, namoraste uma rapariga que era uma amostra de gente, fraca de cabeça, viciada como tu na ignorância e no álcool e nos cigarros. Casaram.
Uns anos mais tarde, já tu amanhavas motas e automóveis à porta de casa, a mesma onde foste criado, e lá te tornaste pai. Que comovente, a irresponsabilidade de dois pobretanas não tem limites. Um, dois, três, quatro. Ena, tantos inocentes dados ao mundo.
As contas lá te pesavam nos dias, cada vez mais, a esposa sem fazer a ponta de um chavo, tu alapado à porta de casa a fazer roncar os motores condenados e na maior parte do tempo a coçar a barriga; os putos rua acima, rua abaixo, andrajosos, apatetados, ruins como aprendizes do demo. Assim a história não podia acabar bem, nada bem mesmo. Discussões com a mulher, um copo aqui, um charro acolá e pronto, começaste a cavar o teu fim antecipado.
Já sozinho aguentaste um par de meses sem ires ao tapete. Depois, foi tudo muito rápido, uma crise de raiva, um lar virado do avesso, o choro imparável dos putos e toca de fazer a primeira tentativa de suicídio. A conversa fiada dos psiquiatras deixou-te atónito, tanta palavra cara para descrever uma depressão, tanto medicamento para ganhar pó na mesinha de cabeceira, tanto recurso desperdiçado num bandido, digo eu.
Objectivo atingido, um mês passado estavas tu a saltar para cima de um banco, a enlaçares-te na corda passada em volta do candeeiro e a esfumares-te duma rua que nunca te olhou nos olhos.
Arrisco-me a dizer que a fatiota que levas para o esquife valerá mais do que o preço da tua alma. Mas é só uma opinião, não me leves a mal.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

da via panorâmica

A nossa casa é linda. Repara como aqui apertadinhos estamos tão bem um para o outro. Aqui tudo é teu e meu; nosso, nosso, quero eu dizer! Deixa-me ver, temos o lençol, este saco-cama velho e sujo, a roupa que trazemos no corpo e pronto. De resto nada, de mais nada. Estendidos na relva, de papo para o ar, nem as paredes de uma velha casa em ruínas nos separam do trânsito e das pessoas. Por vezes, pelos menos para mim, o dia custa a passar: levantar-me todos os dias, percorrer um par de metros, parar em frente ao centro comercial e implorar pela misericórdia de quem entra e sai das lojas; cansa-me. De segunda a domingo – sempre, sempre na iminência de nem uma migalha ter para partilhar contigo – deixa-me triste, muito mesmo. Desculpa. Sabes bem que o que nos faz andar nisto é o vício, a dependência de umas gramas de pó, para mim e para ti, em comunhão. Podíamos pensar em trabalhar como todos eles. Sim, a tempo inteiro, a fazer qualquer coisa. Vejo-me até a lavar escadas, a limpar a

de ontem

Fiz-me ao caminho, rumei a Norte. Para trás deixei tudo, aqueles que amava, que detestava, que me eram indiferentes. Ouvi aqui e ali que era doido. “Deixas assim o sítio que te viu nascer?”, “ Mas, e o amor? o nosso amor…”. Nada lhes respondi. Durante anos, olhei para o chão, agora feito de granito, escuro, mesmo em dias em que a luz toma conta dos dias. Sempre na sombra de outros, à espera de acordar de novo, fazer de conta que os caminhos incertos eram os mesmos de outrora, as plantas, os turistas… Com o corpo pesado, a mente turva de ideias vazia, vagueio em terra alheia. Mudar custa sempre, ainda que entre mim e o passado presente, haja somente a distância de um braço de rio.