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da via panorâmica

A nossa casa é linda. Repara como aqui apertadinhos estamos tão bem um para o outro. Aqui tudo é teu e meu; nosso, nosso, quero eu dizer! Deixa-me ver, temos o lençol, este saco-cama velho e sujo, a roupa que trazemos no corpo e pronto. De resto nada, de mais nada.


Estendidos na relva, de papo para o ar, nem as paredes de uma velha casa em ruínas nos separam do trânsito e das pessoas. Por vezes, pelos menos para mim, o dia custa a passar: levantar-me todos os dias, percorrer um par de metros, parar em frente ao centro comercial e implorar pela misericórdia de quem entra e sai das lojas; cansa-me. De segunda a domingo – sempre, sempre na iminência de nem uma migalha ter para partilhar contigo – deixa-me triste, muito mesmo. Desculpa.

Sabes bem que o que nos faz andar nisto é o vício, a dependência de umas gramas de pó, para mim e para ti, em comunhão. Podíamos pensar em trabalhar como todos eles. Sim, a tempo inteiro, a fazer qualquer coisa. Vejo-me até a lavar escadas, a limpar a casa das senhoras ricas ou com a mania de que o são. Sei que não concordas comigo, raramente concordas; quando me ponho a imaginar uma vida normal mandas-me calar, puxas-me para ti e abafas-me contra o teu peito. Eu sou uma lingrinhas, e já só tenho pele e osso. Tu continuas alto e bonito, ainda emanas um certo ar de atleta, surfista talvez. Querido, escuta, eu não o digo por mal, mas se ao menos também me ajudasses a recolher umas moedas em vez de me ficares a controlar ao longe, a rezingar por eu não fazer mais dinheiro… qualquer dia, quando as pessoas deste bairro, deste shopping se cansarem da minha cara morena e com as pústulas a permanecerem semanas a fio, pões-me numa esquina, numa rua, num beco, à espera de quem passa. Depois, como sempre, hás-de exigir que te renda uns trocos, os suficientes para matar a fome das veias.

Não é querer ser desmancha-prazeres, mas esta casa precisa de levar uma volta.

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de ontem

Fiz-me ao caminho, rumei a Norte. Para trás deixei tudo, aqueles que amava, que detestava, que me eram indiferentes. Ouvi aqui e ali que era doido. “Deixas assim o sítio que te viu nascer?”, “ Mas, e o amor? o nosso amor…”. Nada lhes respondi. Durante anos, olhei para o chão, agora feito de granito, escuro, mesmo em dias em que a luz toma conta dos dias. Sempre na sombra de outros, à espera de acordar de novo, fazer de conta que os caminhos incertos eram os mesmos de outrora, as plantas, os turistas… Com o corpo pesado, a mente turva de ideias vazia, vagueio em terra alheia. Mudar custa sempre, ainda que entre mim e o passado presente, haja somente a distância de um braço de rio.