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do vulcão

Lamento saber que teve uma vida infeliz, senhora Valdete.


Soube-o por si, e senti-me impotente para fazer qualquer coisa que fosse para alterar toda a sua tristeza, a raiva inerente ao seu discurso. Como pode alguém resistir tanto tempo à crueldade de um marido insensível ao amor do próximo e mesmo assim pensar que ainda quer ser feliz? O pulha castigava-a a si e ao menino pelo que me contou. Já não bastava entrar em casa com bafo a álcool, obrigá-la a pôr-se debaixo dele, contra vontade, e mesmo assim não deixava a pobre criança em paz. Fechar alguém num quarto escuro, empurrando até lá dentro aos berros é da tarimba dos verdugos. Fê-lo também consigo, quantas vezes? Um ror delas? Compreendo o sentimento de impontência.

Nem aos animais ele perdoava. Quantos terá ele abatido só por não fazerem o que lhes mandava? Muitos, muitos. Outros morriam porque sim, eram rafeiros decrépitos encontrados no monte e só serviam para o abate. Para tornar o cenário mais negro, incinerava os cadáveres dos bichos: depositava a cinza dos desgraçados em vaso próprio, etiquetava-os e expunha o resultado na vitrina da sala-de-estar, ordenados cronologicamente e por pedigree. Um exterminador, esse seu marido, bem pode dizê-lo. Fazia-o por missão? Há homens assim, santo deus.

Com certeza que tem a razão do seu lado para ter feito o que fez. Dona Valdete ouça, ter-se aproveitado da fragilidade momentânea dele – naquele dia acordou-a lavado em suor, a delirar de febre, foi? – para desferir um golpe de misericórdia, rasgando-lhe o peito de cima a baixo, foi um gesto corajoso, de redenção para consigo mesma, pelo menino.

Se eu estivesse no seu lugar teria aproveitado a primeira oportunidade para acabar com a raça do animal.

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