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adivinha quem vem para jantar

Estico-me, tenso, no chão duro e frio. Tento que a dor me passe por cima, sem tocar. Estou assim há horas. Exercito o ridículo da pose. Um palhaço vestido dos pés à cabeça, nariz proeminente, sapato de verniz de tamanho gigante. Se continuar a chorar a maquilhagem vai deixar de fazer sentido. Uma cara borratada, feia e rígida, nada dada a aplausos. Chega-me aos ouvidos o riso fácil das crianças, gargalhadas estridentes de adultos, a voz colocada do apresentador de serviço. Tenho um cartaz de espectáculo em nome próprio. Retrato fiel, convidativo.


Câmara, acção. Registam todos os meus gestos, um por um. Belo anúncio. A cidade ficou convencida da minha arte.

Agora que esperem por mim, desistam, batam com a porta, reclamem o dinheiro de volta. Não me vou levantar. Tirem-me da equipa. Daqui só saio para o Hospital. O Doutor há-de prescrever uma boa dose de comprimidos, coloridos, desejosos de fazerem alguém feliz. Mais uns tempos e serei outro: vivo e dinâmico, a passear pelas ruas de mão dada com a família. Finjo que quero dar o que não tenho, bebo a felicidade alheia no engano do dia-a-dia. Dói-me tudo por dentro, desfeito e descomposto, impróprio para consumo.

Tenso, no chão duro e frio, vestido de palhaço.

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