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Teatro Ciência Teatro

Um ego é um ego é um ego é um ego

NOTAS DE ENSAIO

1. Cheguei a dizer que Ego "começa por ser uma peça teórica sobre o cérebro para acabar numa angustiante viagem emotiva". Isto é mentira: o cérebro é que é uma angustiante viagem emotiva. Há uma cara, fachada sobre uma caixa que encerra uma massa de minhocas, miolo de noz electroquímico e etc - isto diz mais à divulgação científica. Mas depois o interior dessa estrutura processa imagens e experiências, e isto começa a interessar ao teatro - curto e grosso: uma peça sobre o funcionamento do cérebro não interessa, uma peça dentro da cabeça interessa muito. Acho que o teatro, como linguagem, não é partidário do feixe, é partidário do ego, um espectáculo é uma "ostra central de percepção" (como Virgina Woolf diz do 'eu').

2. O teleporte (ou será teletransporte?) é uma experiência imaginada, gosto das improvisações 'tecnológicas' dos actores (um deles fala de ficção científica de leste e agrada-me a ideia de estarmos mais perto da estação Solaris do que da nave Enterprise - salvaguardadas as distâncias, que não quero invocar o nome de Tarkovski em vão!).
O teleporte inicial é um pretexto ficcional; avançando mais, a peça torna-se um thriller neurológico. A experiência de Alex é do domínio do (plano) subjectivo; já o glioma borboleta dela é uma imagem real - ele fala sobre o cérebro, ela tem um tumor na cabeça (cabeça e cérebro, mais uma vez, não são só uma diferença semântica).

3. Depois de começar a ler os neurologistas da praxe (Sacks, Damásio) encontrei Jonah Leher (Proust era um Neurocientista) e fico exultante - confirmo com ele a intuição de que a arte antecipa a ciência, fico corporativamente descansado e acabo com ele a citar Gertrud Stein: "Tive tantadificuldade para compreender as condições a partir dos compêndios que senti um processo clarificrador (clarificador) (...) era muito necessário. Não que XXXXX os livros nem todos dizem a verdade com eu a conheço mas que dizem tanto XXXXX que uma pessoa fica confusa".
As rasuras e os erros ortográficos são mesmo assim, a carta foi enviada a um professor da faculdade de Medicina. Ela dizia que os desenhos, contrariamente aos compêndios, "limpamomatagal e deixam um caminho claro" - eu gostava de desenhar a peça como uma atlas de anatomia da Renascença (em imagens de baixa resolução mas elevado grau de beleza)

4. O neurologista Paul Broks (co-autor especialista) abre Into the Silent Land, livro de inspiração para Ego, com um poema de Emily Dickinson para o fechar com um poema de Christina Rossetti - esta peça será um poema neurológico?

João Pedro Vaz (3 Agosto 2009)
http://sobreoego.blogspot.com/

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