E ali estávamos os três, reunidos para o habitual almoço evocativo, tensos, acossados, cada um circunscrito ao seu universo. Durante aquelas horas passou-me diversas vezes pela cabeça deixá-los à sua sorte de casal na terceira idade, fazer o saco e regressar ao meu apartamento, no centro da cidade. Mas não, entre a altivez do Pai, que de meia em meia hora, questionava a minha opção profissional – “Com que então senhor restaurador… senhor restaurador, de merda, só pode!”; “por isso é que não constituis família – uma namorada aqui, outra ali e pronto, nada de casamento ou filhos: para quê mudar de vida?”, “O teu irmão sim, era de medicina, um futuro Senhor Doutor…”. Ripostei: nunca o vi abdicar de algum do seu tempo, senhor meu pai, para de forma carinhosa e dedicada, olhar para mim e para o AS como seres autónomos, senhores da sua vontade. Sempre nas Urgências, Consultas fora de horas a vizinhos e conhecidos, estudioso de anatomia ou perspicaz investigador das mais recentes inovações farmacológicas para o tratamento de enxaquecas ou dores de dentes. Egoísta!
A minha mãe aos primeiros sinais de conflito olhava o prato ainda cheio de arroz de cabidela. Com placidez, qual mártir, evocava entre dentes os santinhos para que tudo acabasse bem entre nós, fossemos uma família feliz, pelo menos durante aquele dia.
O momento mais bizarro, acabou com a visita do NM, o tal amigo do meu falecido irmão. O rapaz, não passava de um ser desprovido de auto-estima, condicionado por efeito de anti-depressivos. Com trinta anos ainda vivia em casa dos pais e só esporadicamente fazia um outro biscate, presumo mesmo que nunca terá tido mesmo emprego por mais de seis meses. NM vivia sob o peso de ter sido salvo da morte certa por alguém inequivocamente com mais futuro que ele, mais inteligente e com um apurado sentido de responsabilidade. Enquanto a minha mãe lhe agradecia, com acentuado ênfase, ele se ter lembrado de partilhar a refeição connosco, o meu pai mal ele se aproximou da sala de jantar, virou-lhe as costas, fingindo contemplar o jardim, mal o cumprimentando. Eu tentava ser cordial, deixando-me estar no meu lugar. No íntimo contava os minutos para ele sair porta fora. Ficou até sentir o estômago cheio. Na despedida olhou a fotografia do meu irmão, e pareceu-me tê-lo visto fazer algo parecido a uma pequena vénia.
Durante o resto da tarde não mais vi o meu pai. Acompanhei a minha mãe ao cemitério, ajudei a limpar a campa do meu irmão das ervas daninhas que a Primavera trouxe e a pôr os Malmequeres na sepultura, flor de que ele tanto gostava.
Após o jantar a mãe teve um momento em que perdeu por completo o controle de si mesma: enquanto os três víamos na TV um daqueles concursos de “cultura geral”, entrou pela janela aberta uma borboleta amarela. Sem que nada o fizesse esperar levantou-se repentinamente, correu para pobre insecto e como se de um ente querido se tratasse, deu vivas e graças a Deus, lacrimejou e de braços abertos e cabeça levantada, lá foi ela a correr casa a fora. Depois de alguns momentos de estupefacção, eu e o meu pai decidimos que aquilo estava a ser barulho a mais para uma casa de pessoas normais. “É o teu irmão, o teu irmão!!!”, “Mãe…”, “Que é que te deu, mulher?”, “Calma, calma, eu ponho o bicho lá fora.”
Nessa noite estriei um pijama novo, azul, a cor favorita do meu irmão primogénito (alguma vez alguém lá de casa me perguntou qual a minha cor favorita?).
No dia seguinte, depois do pequeno-almoço ainda houve tempo para uma última fotografia de família. Os meus pais e eu, com o retrato do AS ao peito da minha mãe, junto ao coração. Seguimos a pé para a estação de camionagem, as despedidas habituais e um “até breve”, menos quente que aquela manhã de Verão.
A minha mãe aos primeiros sinais de conflito olhava o prato ainda cheio de arroz de cabidela. Com placidez, qual mártir, evocava entre dentes os santinhos para que tudo acabasse bem entre nós, fossemos uma família feliz, pelo menos durante aquele dia.
O momento mais bizarro, acabou com a visita do NM, o tal amigo do meu falecido irmão. O rapaz, não passava de um ser desprovido de auto-estima, condicionado por efeito de anti-depressivos. Com trinta anos ainda vivia em casa dos pais e só esporadicamente fazia um outro biscate, presumo mesmo que nunca terá tido mesmo emprego por mais de seis meses. NM vivia sob o peso de ter sido salvo da morte certa por alguém inequivocamente com mais futuro que ele, mais inteligente e com um apurado sentido de responsabilidade. Enquanto a minha mãe lhe agradecia, com acentuado ênfase, ele se ter lembrado de partilhar a refeição connosco, o meu pai mal ele se aproximou da sala de jantar, virou-lhe as costas, fingindo contemplar o jardim, mal o cumprimentando. Eu tentava ser cordial, deixando-me estar no meu lugar. No íntimo contava os minutos para ele sair porta fora. Ficou até sentir o estômago cheio. Na despedida olhou a fotografia do meu irmão, e pareceu-me tê-lo visto fazer algo parecido a uma pequena vénia.
Durante o resto da tarde não mais vi o meu pai. Acompanhei a minha mãe ao cemitério, ajudei a limpar a campa do meu irmão das ervas daninhas que a Primavera trouxe e a pôr os Malmequeres na sepultura, flor de que ele tanto gostava.
Após o jantar a mãe teve um momento em que perdeu por completo o controle de si mesma: enquanto os três víamos na TV um daqueles concursos de “cultura geral”, entrou pela janela aberta uma borboleta amarela. Sem que nada o fizesse esperar levantou-se repentinamente, correu para pobre insecto e como se de um ente querido se tratasse, deu vivas e graças a Deus, lacrimejou e de braços abertos e cabeça levantada, lá foi ela a correr casa a fora. Depois de alguns momentos de estupefacção, eu e o meu pai decidimos que aquilo estava a ser barulho a mais para uma casa de pessoas normais. “É o teu irmão, o teu irmão!!!”, “Mãe…”, “Que é que te deu, mulher?”, “Calma, calma, eu ponho o bicho lá fora.”
Nessa noite estriei um pijama novo, azul, a cor favorita do meu irmão primogénito (alguma vez alguém lá de casa me perguntou qual a minha cor favorita?).
No dia seguinte, depois do pequeno-almoço ainda houve tempo para uma última fotografia de família. Os meus pais e eu, com o retrato do AS ao peito da minha mãe, junto ao coração. Seguimos a pé para a estação de camionagem, as despedidas habituais e um “até breve”, menos quente que aquela manhã de Verão.
Fantástico!
ResponderEliminarSimplesmente fantástica a forma como aborda a verdadeira forma de estar de muitos....