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agridoce

Ainda respiras? Não te sinto a pulsação. Para mim é quase como se tivesses morrido. O teu corpo está frio. Que horror! não te sabes agasalhar antes de te deitares aqui comigo? Não sou nenhuma botija de água quente, rapariga. Ter de dormir com um cadáver (ausente) é algo desagradável. Nem o teu cheiro fica nos lençóis. Qualquer dia deita-se aqui outra moça, igualmente friorenta, que monopolize a roupa de cama e eu ficarei impotente para travar o súbito das nossas memórias.
Prefiro que a minha futura seja carinhosa, tu eras brutinha, em vez de me amaciares a carne, tonificares a pele com meiguice, desatavas apelar ao repentismo da aeróbica e fazias de mim um joguete entre a cabeceira e os pés da cama. Bem podia espernear ou gemer aos teus ouvidos, que a menina nada de ser cooperante ou compreensiva. Um abuso. Deixei mesmo de nadar aos Sábados de manhã por tua causa: explica-me, onde e como poderia eu encontrar forças suficientes para vencer uma piscina olímpica depois de uma noite de pinotes, cambalhotas e flic-flacs à retaguarda?! Querida, ponderei abandonar a leitura compulsiva de romances e dedicar-me em exclusivo à transformação de mim mesmo num atleta de alta competição. Trocaria a Praça pelo Centro de Alto Rendimento do Jamor e teria por companhia tenistas ou halterofilistas. Tudo em prol do nosso bem-estar, só para corresponder aos índices de massa gorda e massa magra, descritos no teu Manual de homem perfeito. Na minha dieta constariam as proteínas, os hidratos de carbono, as gorduras, as fibras, o cálcio, outros minerais, não esquecendo as vitaminas.
E como seria belo, saudável e feliz (contigo).

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