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do pai

Pai, o que nós podíamos ter pescado, Pai. Aproveitar os Verões no Alentejo e pescar o tempo inteiro; o rio Mira, na Casa Branca puxava-nos. Era sairmos da casa da Avó, sozinhos, sem a Mãe, nem o Paulo - que já nem passava as férias connosco - e zarparmos. Estávamos só a 10 minutos de caminho, Pai. Tínhamos o carro às ordens, ninguém nos incomodava, e lá iríamos nos para o pontão do braço de rio.
Por mim teria abdicado de todas as manhãs de praia: como eu detestava acordar ao som das mulheres da casa, vestir os calções de banho, uma t-shirt e por uns sapatos e ir para Milfontes, Pai. Eu era a única das crianças da casa a resmungar com toda aquela azafama, injusta e injustificada – o primo Miguel por vezes alinhava no boicote, mas só às vezes, e só uma gripe ou o nevoeiro de S. Luís impedia que gastássemos tanta gasolina e energia para estarmos à beira-mar. Tu, mesmo lá pescavas, sozinho, ias para as rochas, lembras-te? Sim, as rochas, as das praias das Furnas. Eu receava subir ao alto contigo, tinha medo de perder o equilíbrio e cair: eu sei que me darias a mão, Pai, mas mesmo assim o medo iria dominar-me por dentro e por fora: e se acontecesse uma desgraça?, eu caído inanimado, no chão, todos os banhistas à minha volta e tu de olhar incrédulo para o destino – como seria?
Muito direitinho, ficava cá em baixo, a brincar com o disco do Miguel ou a jogar às cartas com a Ana e a Lena, a contar as horas, receoso de que não mais aparecesses para nos recolher de volta. A Mãe e as minhas tias eram umas chatas, não nos deixavam estar mais do que cinco minutos ao Sol - não que eu gostasse -, e também agarravam-nos sempre a mão quando íamos à água, como se faz com os meninos pequenos. Um terror, Pai!

Agora está a ficar tarde, Pai. Tu estás mais velho e mais companheiro. Passas o tempo longe de mim, entre Lisboa e S. Luís, com a Mãe, para cima e para baixo – Quantos quilómetros fizeram vocês nestes últimos meses, depois da nova casa estar pronta? “Lá em baixo a partir da Primavera está-se melhor, filho”. Atendes muitas vezes o telefone e dizes-me breves palavras bonitas, preocupadas; eu aqui estou para te ouvir, ainda que por instantes, Pai.
Para mim serás sempre forte, mesmo quando estás doente, com o pé inchado por causa do ácido úrico ou no Inverno quando passas alguns dias a andar por casa, com o roupão vestido por cima do pijama, a tomar Paracetamol e atacado dos brônquios – tu que em criança andaste por caminhos de cabra, com lobos a morderem-te os calcanhares, a caminho das minas de volfrâmio.
Mas eu tenho fraquezas, Pai. Quando os teus irmãos morreram, abracei-te mas não consegui dizer palavra: custou-me a mim tanto como a ti - não tanto por eles mas por a tua dor: as minhas lágrimas eram por te ver momentaneamente triste, sem consolo. Pergunto-me, Que fiz por ti?
Podíamos pensar passear por Lisboa, ir até Alvalade ver o tio António e a tia Idalina, e o meu primo António Pedro se ele lá estivesse. Tu que trabalhaste nos táxis podias-me dizer os nomes daquelas ruas sem ser preciso olhar o mapa, falares-me de quem morou ali no antigo regime ou ficarmos a olhar as árvores da Avenida da Igreja. Mas não, Pai, agora quando passo o fim-de-semana em Alcântara fico por casa a ver televisão ou a ler, enquanto tu Pai, tratas das tuas coisas no quintal, vês telenovelas e concursos com a Mãe, ou vais à rua tomar café com os amigos.
Por dois ou três dias somos uma família quase completa, não fora o Paulo morar na Amadora com a Inês, a Joana e a Sílvia.

É verdade, com isto tudo esqueci-me da pesca, Pai, mas isso já não interessa para nada.

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