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da fuga

“Dá-te ao trabalho de ignorar a tristeza dos teus”


Disse-o e saí, porta fora, sem demonstrar o mínimo gesto de arrependimento. O eco da porta ressoou pelas escadas até sorver os primeiros ruídos da rua. Depois, meio desorientado, com os ossos massacrados pela noite mal dormida, dirigi-me cambaleante para a paragem do metro, daí para a sala de espera da gare dos comboios, fixando o meu poiso ao balcão do bar da estação. Devo ter passado muitas horas em monólogo, de mim para mim, entre a voz da emoção e a voz da razão. Conclusões nenhumas, estaria ali o tempo necessário para decidir a minha vida.
Minuto após minuto, o empregado do balcão investia em tentativas sucessivas para que eu consumisse qualquer coisa.

“Por acaso não quer que lhe sirva uma água com gás, uma sandes para encher o estômago ou uma peça de fruta?”

“Ó homem, desapareça.”

Focava de novo a atenção nas mesas cada vez mais cheias de gente apressada e barulhenta e esquecia-se de mim.
Não sei quantas horas ali estive, alheio ao movimento dos passageiros, às movimentações de cargas e descargas das locomotivas. Adormeci.
Já noite, com o frio a tomar conta do corpo, despertei num repente, estendido sob o assento duro de plástico no resguardo da plataforma, com o Segurança à ilharga.

“Chefe, faça-se ao caminho que o seu destino não é aqui.”

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