Avançar para o conteúdo principal

o que eu ando a ler

Tudo dentro de tudo

2666
Autor: Roberto Bolaño
Título original: 2666
Tradutores: Cristina Rodriguez e Artur Guerra
Editora: Quetzal
N.º de páginas: 1030
ISBN: 978-972-564-816-2
Ano de publicação: 2009

Há romances que se preocupam em fixar uma parte da realidade: um certo tempo histórico, uma certa geografia, o equilíbrio ou a tragédia de certas vidas. E depois há romances – muito poucos – que ambicionam abarcar o mundo inteiro. Não lhes interessa reflectir a realidade, mas antes criá-la de novo, reinventá-la, explorar-lhe os limites. São livros totais, que se deixam inebriar pela própria desmesura, sem medo do falhanço ou dos abismos para onde a sua ambição os pode arrastar. Em 2666, um professor de filosofia chamado Amalfitano faz o elogio destas grandes obras literárias «imperfeitas», as que «abrem caminho no desconhecido», enfrentando «aquilo que nos atemoriza a todos, esse aquilo que nos acobarda e verga». Obras como Moby Dick, O Processo, Bouvard e Pécuchet. Ou, acrescento eu, como este gigantesco, terrível e belíssimo romance de Roberto Bolaño, um prodígio narrativo que acompanha, para além da crise existencial de Amalfitano, as deambulações de várias dezenas de outras personagens, igualmente perdidas e desarmantes.
Em 2666, Bolaño quis testar a infinita elasticidade do género romanesco. Até onde se pode chegar com uma ficção? Resposta: até onde se quiser. Ou melhor, até onde se for capaz de ir. A fronteira, se existe, é a própria escrita e Bolaño consegue empurrá-la sempre mais para diante. As histórias multiplicam-se, nascem umas das outras, proliferam como caixas chinesas: do submundo criminal mexicano às batalhas na frente Leste da II Grande Guerra, de Bornéu a Veneza, da crucificação de um general romeno (num castelo da Transilvânia) aos sacrifícios humanos dos astecas, de um combate de boxe demasiado rápido aos intermináveis espancamentos entre reclusos de uma prisão de alta segurança, das discussões eruditas em congressos sobre literatura alemã contemporânea à melancolia das profundezas oceânicas. Eis um labirinto com muitas entradas e nenhuma saída. Um buraco negro que devora qualquer matéria ficcionável. Um lugar onde cabe, literalmente, «tudo dentro de tudo».
Embora esteja dividido em cinco partes, que funcionam como cinco livros autónomos, pode dizer-se que o centro gravítico de 2666 é a imaginária cidade de Santa Teresa, no deserto de Sonora (norte do México, perto da fronteira com o Arizona), onde vão aparecendo, entre 1993 e 1997, centenas de cadáveres de mulheres pobres – prostitutas, empregadas de mesa, operárias fabris –, assassinadas quase sempre após tortura e violação sexual, sem que as autoridades policiais, incompetentes e misóginas, consigam deslindar os crimes. É a Santa Teresa que chegam, na primeira parte, três críticos literários: Jean-Claude Pelletier, Manuel Espinoza e Liz Norton, académicos unidos a um quarto crítico (Piero Morini) pela geometria instável de um quadrado amoroso e pela dedicação devota à obra de Benno von Archimboldi – escritor «prussiano» de culto, cioso da sua invisibilidade, que viajou para aquela cidade violenta não se sabe porquê. E é em Santa Teresa que alguns dos múltiplos fios narrativos deste livro se atam, sem nunca oferecerem ao leitor – hipnotizado desde as primeiras páginas pela riqueza estilística da prosa de Bolaño, pela energia pura da sua linguagem – o alívio de uma explicação para o Mal que emerge de todo o lado, como que saído de um «poço negro».
Enquanto o conduzem às cegas pelo bas-fond de Santa Teresa, Oscar Fate, o repórter afro-americano que é protagonista da terceira parte, pondera apanhar o primeiro avião para Nova Iorque, «onde tudo voltaria a ter a consistência da realidade». Isto é, da realidade real. Faz sentido. Porque a realidade de 2666 é a outra, a que perde os seus contornos, «como se a passagem do tempo exercesse um efeito de porosidade nas coisas», a realidade da estranheza e do «pesadelo flutuante», a realidade incerta, sempre a oscilar entre a vigília e o sonho, a verdade e o simulacro, a lucidez e a loucura.

Avaliação: 10/10

fonte: http://bibliotecariodebabel.com

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Domingo

de pequenino

Ao contrário de outros, as minhas aulas de Educação Visual eram um pesadelo: o lápis impelia-me a encher a folha de cavalinho A4 de traços indefinidos, que só a muito custo, quiçá com a colaboração de um técnico de psicologia, se poderia aferir o significado. Na pintura não me saí melhor, a palete de cores primárias, sempre à espera do processo dinâmico de construção de ambientes mais e mais complexos, cedo se decepcionava com o Eu “artista” - angustiava-me não conseguir expressar-me na tela vazia, de encher o mundo, que para mim era só aquela sala repleta de aspirantes à arte futura. Confesso que escrever é para mim mais fácil, eu sei que as crianças começam por rabiscar no branco do papel, atabalhoadamente, sem desistir, a sua casa, a mãe, o pai, o irmão “mais” grande, o cão, o gato ou a galinha. A verdade é que desaprendi tudo isso. Logo que entrei para a escola, dediquei-me a desenhar letras como me tivessem a pedir para fazer um retrato. Ao longo dos anos, com o tique de apanh...

dos trapos

Que desconforto! A dor de cabeça miudinha, deu lugar à estranheza e ao desespero. Ontem, foi domingo, certo? Hoje, segunda-feira… Muito bem, se assim é como é que explicam que aos 85 anos eu possa ter adormecido numa casa num dia e tenha acordado numa outra na manhã seguinte? Julgar-me-ia louca, não fora a dificuldade como caminho, mesmo num chão bem posto e macio como o do meu quarto, sala, cozinha e casa-de-banho. As obras custaram-me anos de reforma. O senhor Joaquim, um homem muito honesto e trabalhador que conheço desde moço, cumpriu tudo o que lhe pedi. Em poucos meses, quase sem dar por isso, pôs-me tudo novo: trocou o papel parede por tinta rosa velho, trocou o soalho por tacos envernizados cor de pinho, os móveis, esses, continuam os mesmos, sólidos, à antiga à portuguesa. Mas, como dizia, de um dia para o outro, sinto que não estou no sítio onde pertenço, mas longe da minha casa. É tudo tão diferente, tão pouco parecido com o que é meu, que não tenho dúvidas, eu não pertenç...