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da mentira

Ausentei-me há muito. Não sinto falta da Ribeira das Naus, tão pouco dos sons do Tejo. Hoje as gaivotas recordam-me dias de tempestade. Estou em terra firme, a brisa marítima, minha confidente passou a miragem.
Escrevo-te como se vivesse no exílio: mas não, parti por vontade própria. As cores aqui são outras, as pessoas falam mais alto, projectam a voz desgarrada a curta distância. Habituei-me depressa ao ritmo desta cidade. A torrente de cheiros novos, alguns nauseabundos, contaminam-me todo o tempo. Quase sou um deles. Ainda visto os trapos velhos para te recordar, deliro nos gestos de ontem para adiar a personalidade do hoje.
Enfraqueço minuto a minuto, o sangue preguiça dentro de mim, assombra-me o infortúnio. Ouço os teus soluços, longe muito longe, sumidos. Dobram-se-me os joelhos, vergo-me perante o Poder divino, no quente da pedra escura, como se Tu te transformasses num caminho além do que é visível, para este ainda teu comum mortal.

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