Avançar para o conteúdo principal

requiem

-Consegue lembrar-se de pormenores?

- Pormenores?

- Sim, descreva-me a cena antes e depois do “acidente”.

- Doutor, sei que estávamos no carro, parados na Praça, a falar normalmente… depois comecei a sentir uma forte pressão na cabeça, um zumbido forte nos ouvidos, a seguir a explosão…

- Estávamos? Explosão?

-Sim, a pessoa morta ao meu lado, tudo a andar à roda…

-Morta?

-Sim, a Praça em chamas, eu sem sentir nada, a bater a porta do carro, de volta a casa. Sem acudir a minha companheira, ali mesmo, fulminada ao meu lado. E tudo a desmoronar-se em redor e eu a passar por toda aquela catástrofe, coração de pedra, alheio à desgraça…

- Senhor Fernando, pare por agora, se faz favor.

- Repare, nada do que me conta faz grande sentido. Caso não saiba, apareceu-nos aqui à porta do hospital como outro qualquer paciente, queixava-se de uma forte enxaqueca, pedia só que lhe receitassem algo para suportar as dores, nada mais. O curioso foi começar por trocar a sua identidade, os seus dados pessoais: morada, estado civil… daí esta consulta.

- Quer dizer que não se passou o que se passou?

- Como?

- Se a minha companheira está viva… se a Praça não veio abaixo.

- Senhor Fernando, o que se passou consigo ao certo, não sei. Posso sim afirmar que esteve envolvido num processo traumático, caracterizado por uma perda parcial ou total de memória: uma espécie de negação, não é quem afirma que é, não mora onde diz que mora… simplificando, toma-se por alguém que não é a pessoa com quem estou a falar. Faço-me entender?

- Hum, nem por isso.
Diga-me, quem sou eu, antes e depois desse dito “processo traumático”?

- Homem, isso cabe-lhe a si desvendar. Dou-lhe um conselho, depois de sair do hospital, vá directo a casa, siga os caminhos que lhe são familiares, puxe pela memória, tente encontrar a dita Praça, a sua casa. De seguida contacte quem lhe é próximo, vá à sua agenda e tente telefonar a cada uma das pessoas da lista, fale com elas até ao limite do tolerável: obtenha histórias comuns de vida, detalhes - tente rescrever o seu passado, as afinidades com quem o rodeia. Depois será fácil confirmar a existência real dessa referida companheira, se para si o assunto é assim tão importante. Não se esqueça, todos esses elementos serão essenciais para a reconstrução da sua personalidade.
Finalmente escreva, escreva tudo quanto lhe passe pela cabeça para interiorizar a sua nova biografia. E por que não começar por esta nossa conversa?

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Domingo

dos trapos

Que desconforto! A dor de cabeça miudinha, deu lugar à estranheza e ao desespero. Ontem, foi domingo, certo? Hoje, segunda-feira… Muito bem, se assim é como é que explicam que aos 85 anos eu possa ter adormecido numa casa num dia e tenha acordado numa outra na manhã seguinte? Julgar-me-ia louca, não fora a dificuldade como caminho, mesmo num chão bem posto e macio como o do meu quarto, sala, cozinha e casa-de-banho. As obras custaram-me anos de reforma. O senhor Joaquim, um homem muito honesto e trabalhador que conheço desde moço, cumpriu tudo o que lhe pedi. Em poucos meses, quase sem dar por isso, pôs-me tudo novo: trocou o papel parede por tinta rosa velho, trocou o soalho por tacos envernizados cor de pinho, os móveis, esses, continuam os mesmos, sólidos, à antiga à portuguesa. Mas, como dizia, de um dia para o outro, sinto que não estou no sítio onde pertenço, mas longe da minha casa. É tudo tão diferente, tão pouco parecido com o que é meu, que não tenho dúvidas, eu não pertenç...

da boavista

Prometi a mim mesma não te voltar a escrever. Cansei-me de esperar por isso, de estar sentada aqui no sofá, com as mãos pousadas em cima dos joelhos, a olhar a porta na ânsia de que a campainha toque por uma ocasião. Não te vou chamar. Conseguirei conter o impulso de ir à gaveta da cómoda pegar numa folha em branco e dizer-te, vem, vem que eu cá estou. As minhas cartas fazem de uma só viagem meio Portugal só para te darem a salvação, um mimo, para que semana após semana te sintas reconfortado com uma palavra amiga, desta que te ama. Não é em vão que vivemos o que vivemos, entre abraços e beijinhos, ao princípio tímidos, depois mais longos e convictos. Tu na minha festa de debutante foste-te aproximando de mansinho ao longo da noite, primeiro, entabulando conversa com os casais de meia-idade, para depois lançares os teus olhos verde-cinza sobre as meninas. Éramos cinco ou seis, nem todas descomprometidas. Foi com certeza a tua voz colocada de locutor da rádio que me fez encarar-te co...